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TEORIA RACIAL CRÍTICA - 2019.2


Martin Luther King: quem foi, biografia e discurso - Toda Matéria
Material da disciplina ‘Teoria Racial Crítica’ (2019.2)

Considerações iniciais

Uma observação preliminar deve ser feita: a expressão 'Teoria Racial Crítica' pode ser entendida em duas acepções, uma lata e outra estrita. Em sentido lato, 'Teoria Racial Crítica' diz respeito a todo e qualquer sistema conceitual que se proponha a explicitar as ideologias hegemônicas que subjazem às relações raciais. Assim, os trabalhos de Franz Fanon e Angela Davis, por exemplo, poderiam ser interpretados como 'Teoria Racial Crítica'. Por outro lado, em sentido estrito, 'Teoria Racial Crítica' refere-se a um movimento intelectual específico, surgido nos EUA em fins da década de 1980, a partir dos esforços de autores como Derrick Bell, Patricia Williams e Kimberlé Crenshaw (foi esta que cunhou a expressão Critical Race Theory, durante evento do grupo, em 1989).  Fruto de discussões travadas dentro das escolas de Direito norte-americanas, a Teoria Racial Crítica (nessa segunda acepção) conservou-se atrelada a temas e problemas de ordem jurídica - ainda que diversas categorias por ela desenvolvidas (como a de 'interseccionalidade') tenham sido apropriadas e reelaboradas em outros campos do conhecimento, como a Sociologia e a Educação.

A disciplina por nós ministrada, no segundo semestre de 2019, na Faculdade Nacional de Direito - UFRJ, ocupou-se da 'Teoria Racial Crítica' em sentido estrito. O objetivo do curso foi apresentar um resgate histórico da trajetória da Teoria Racial Crítica, através de uma discussão sobre a obra de alguns membros emblemáticos do movimento. Dividimos nossas reflexões em três momentos: no primeiro momento, tratamos da "pré-história" da Teoria Racial Crítica, isto é, dos embates doutrinais em meio aos quais, entre o fim da década de 1970 e o início da década de 1980, despontaram noções que servirão de alicerce para a Teoria Racial Crítica; no segundo momento, discorremos sobre as categorias centrais da Teoria Racial Crítica, e que a diferenciam de outras correntes jusfilosóficas igualmente "progressistas"; e por fim, no terceiro momento, falamos das ramificações "interseccionais" da Teoria Racial Crítica, que buscam articular o debate racial com questões de gênero, orientação sexual etc.

Aula introdutória

"Como combater o racismo epistemológico?": essa foi a questão discutida na primeira aula do curso. Depois de apresentar o objetivo da disciplina, a dinâmica das aulas e o método avaliativo, propus uma reflexão sobre a necessidade de repensar os pressupostos teóricos da Ciência do Direito. Não haveria no saber jurídico, por trás de um discurso pretensamente neutro, objetivo e impessoal, uma visão de mundo marcada por privilégios de classe e raça? Não há 'sujeito universal' - todo conhecimento é produzido por indivíduos específicos, imersos em relações de poder pré-dadas. O mesmo ocorre com o Direito. Nesse sentido, as "epistemologias hegemônicas" nos enganam, ao reforçarem a ideia de que estariam imunes a quaisquer jogos de interesse. Valemo-nos de trabalho assinado por Caroline Silva e Thula Pires (jurista brasileira profundamente influenciada pela Teoria Racial Crítica) para explorar o conceito de epistemologia colorida. O reconhecimento de que o Direito, enquanto mecanismo de controle social, pode servir para reforçar hierarquias está na base da Teoria Racial Crítica (e de outras teorias jurídicas críticas "pós-modernas", surgidas a partir da década de 1960). O esforço de desmascarar a dimensão ideológica subjacente ao discurso jurídico aproxima a Teoria Racial Crítica de outras propostas acadêmicas pós(ou neo)-marxistas.


Pré-história da Teoria Racial Crítica

Na segunda aula, abordamos o despontar, no Ocidente, do "pensamento jurídico crítico", um conjunto heterogêneo de correntes teóricas que floresce no seio dos movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970 (no Brasil, poderíamos citar, por exemplo, o Direito Achado na Rua e o Pluralismo Jurídico). Na América do Norte, a mais radical vertente do "pensamento jurídico crítico" foi constituída pelos Critical Legal Studies, proposta marcadamente inspirada no trabalho do filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger. "Direito é política!" serviu de lema para os crits - com efeito, o grupo pretendia mostrar que, por trás da aparente neutralidade do sistema legal (e subjacente à ideia de 'racionalidade jurídica'), se ocultariam relações de dominação. Para os Critical Legal Studies, haveria uma estreita correlação entre modo de produção capitalista, ideologia liberal e formalismo jurídico. A Teoria Racial Crítica nasce dentro dos Critical Legal Studies. É possível falar de capitalismo sem discutir racismo e colonialismo? Dominado por homens brancos heterossexuais, o movimento dos Critical Legal Studies gradualmente começará a parecer, aos olhos de muitos teóricos, insensível à temática racial. Assim, dissidentes dos Critical Legal Studies irão, em 1987, fundar a Teoria Racial Crítica, com o fito de desenvolver uma doutrina mais adaptada às vivências de "grupos vulneráveis".
Na terceira e na quarta aulas, tratamos da vida e da obra de Derrick Bell. Quando ocupava a cadeira de Direito Constitucional em Harvard, Bell já lecionava sobre a relação entre raça, racismo e Direito americano (seu curso servirá de inspiração para muitos intelectuais negros). Bell deixa Harvard em 1981, e a universidade se recusa a contratar outro professor afrodescendente e a manter o curso que ele ministrava. Em protesto, a Associação de Alunos Negros de Harvard irá criar o Curso Alternativo, no qual surgirão diversos nomes que, mais tarde, irão adquirir proeminência dentro da Teoria Racial Crítica. Bell escreveu, não apenas análises convencionais de leis e julgados, mas também artigos sobre a História do Direito, bem como contos e crônicas. Essa pluralidade de métodos de investigação punha em xeque os pressupostos da "epistemologia jurídica hegemônica", e criava um repertório de estratégias para debater as relações entre Direito e sociedade. Muitos pensadores associados à Teoria Racial Crítica vão, no encalço de Bell, recorrer a métodos alternativos (como o "legal storytelling") para desenvolver suas pesquisas; ademais, se valerão de conceitos por ele elaborados, como o 'princípio da convergência de interesses' e o 'realismo racial' .

Categorias centrais da Teoria Racial Crítica

Na quinta aula, falamos do trabalho de Angela P. Harris, a partir da seguinte indagação: "É possível conceber uma escola (de Direito) sem partido?". Harris procura, com base na Teoria Racial Crítica, reestruturar o pensamento jurídico como um todo. Para a autora, os Critical Legal Studies, como outras doutrinas "pós-modernas", correm o risco de ser arrastados pelo relativismo e pelo niilismo. Na visão de Harris, a crítica à ordem vigente precisa, necessariamente, vir acompanhada de um projeto para a estruturação de uma nova ordem, mais justa e fraterna. Em seu entender, a Teoria Racial Crítica - herdeira dos sonhos de Martin Luther King e dos movimentos por direitos civis - teria condições para oferecer esse projeto, conciliando desconstrução e reconstrução. Harris define 'ideologia' como 'técnica de gerenciamento de emoções'. Para a autora, um sistema ideológico que se proponha a "legitimar" uma distribuição particular de poder precisa apelar, não só às crenças, mas às paixões dos indivíduos. Ora, uma crítica à ideologia jurídica dominante deve, por conseguinte, mobilizar, da mesma forma, ideias e afetos. Nesse sentido, Harris concebe a Teoria Racial Crítica como um projeto intelectual e emocional. Se o Direito, na sociedade capitalista, inibe a empatia pelo sofrimento alheio (e produz categorias, como 'raça' e 'gênero', que coisificam pessoas), a Teoria Racial Crítica precisa estimular compaixão. Harris mostra como até mesmo a distinção clássica entre pessoa e coisa (central ao humanismo ocidental) parte de escolhas político-ideológicas específicas, uma "economia emocional" que precisa ser contestada no interior de um programa autenticamente crítico.

Na sexta aula, apresentamos, brevemente, o pensamento de Patricia Williams. Muitos teóricos do Direito pós-modernos rejeitam, integralmente, o ordenamento jurídico estatal, ao argumento de que ele estaria inarredavelmente comprometido com o capital e a lógica burguesa. Esses autores entendem que a única via possível para o campo progressista está na informalidade, nos ordenamentos jurídicos para-estatais (como os criados por comunidades intencionais) e em formas alternativas de resolução de conflitos. O Direito positivo tiraria a energia dos movimentos sociais, e representaria um instrumento alienante. Diversos membros dos Critical Legal Studies esposaram essa ideia. Williams desenvolverá uma crítica a essa posição, argumento que, para grupos vulneráveis (como negros, mulheres e homossexuais), o reconhecimento do "direito a ter direitos" (e do acesso à justiça) é pré-requisito indispensável para uma vida cidadã. Na leitura de Williams, a ordem legal pode ser emancipatória: afrodescendentes precisam se tornar "multilíngues", articulando-se dentro e fora dos espaços institucionalizados. Nesse sentido, é preciso lutar por direitos, e lutar contra o Direito, a um só tempo.

Na sétima aula, falamos da célebre jurista Kimberlé Crenshaw. A autora levanta a seguinte questão: "O racismo atinge da mesma maneira homens e mulheres?". Segundo Crenshaw, o movimento feminista tem sido capitaneado por mulheres brancas, e o movimento negro, por homens afrodescendentes. Nessa conjuntura, as pautas específicas das mulheres afrodescendentes acabam sendo invisibilizadas. Crenshaw desenvolve um método de análise que foca nas intersecções das desigualdades de raça e gênero, permitindo que compreendamos como formas de exclusão e discriminação operam juntas para reforçar hierarquizações sociais. 


Ramificações interseccionais da Teoria Racial Crítica

Inspirados na obra de Crenshaw, novos grupos irão despontar no âmbito da Teoria Racial Crítica. Para eles, a primeira geração de intelectuais do movimento estaria demasiado comprometida com a cosmovisão do homem negro, heterossexual e cisgênero. Dessa forma, os dilemas de outros segmentos vitimados pelo racismo (a mulher negra  heterossexual transgênero; o homem asiático homossexual cisgênero etc. etc. etc.) seriam deixados de lado. Se a proposta central da Teoria Racial Crítica é que todos devem aprender a "nomear a própria realidade", construir um saber que não desvalorize, mas exalte suas perspectivas pessoais, então é preciso nuançar e problematizar as generalizações que o próprio movimento acabou fazendo. Foi esse o desafio encampado pela AsianCrit, a LatCrit e a QueerCrit.

Na oitava aula, falamos da AsianCrit, tomando por referência paper de Neil Gotanda e Robert S. Chang. Para os autores, o "paradigma branco/preto" que domina a Teoria Racial Crítica hegemônica seria insensível às nuances das relações de poder baseadas na discriminação racial. Se, como a primeira geração da Teoria Racial Crítica pugnava, "raça (ainda) importa!", na visão de Gontanda e Chang "diferentes raças importam diferentemente", isto é, estão sujeitas a métodos específicos de discriminação. O caso dos asiático-americanos seria emblemático. A despeito do mito da "minoria modelo" (que retrata asiáticos como "trabalhadores, inteligentes, bem-sucedidos", plenamente inseridos dentro da cultura branca), inúmeras formas de exclusão sujeitam descendentes americanos de chineses, coreanos, vietnamitas etc. A AsianCrit permite debater, ainda, o conceito de 'racialização diferencial' - a maneira como, a partir de conflitos contingentes, grupos étnicos podem ser racializados ou desracializados (é o caso dos italianos e dos irlandeses nos EUA da primeira metade do século XX, por exemplo). É possível, ainda, a partir da AsianCrit, refletir sobre triangulação racial - quer dizer, sobre a maneira como, no mundo moderno, a relação entre raças não brancas (asiáticos e negros etc.) é sempre mediada e condicionada  pela supremacia branca.

Na nona aula, abordamos o acentuado processo de racialização de latinos (analisado pela LatCrit), na América do Norte. O texto-base, aqui, foi do professor Francisco Valdes, cofundador do Centro de Estudos Jurídicos Hispânico & Caribenho da Universidade de Miami. Em sequência, conversamos sobre a possibilidade de uma Ciência do Direito não-homogeneizante, aberta à dialética entre identidade e diferença, individualidade e coletividade - e que permita uma verdadeira cooperação coalizacional entre os diversos grupos vulneráveis.
Por fim, na décima e última aula, nos ocupamos da QueerCrit, à luz de paper de Darren Lenard Hutchinson. Para Hutchinson, o movimento LGBTQIA+ ignora, na maior parte do tempo, as experiências d@s pobres e d@s não-branc@s., que continuam a ser vítimas de estereótipos racistas e sexistas. Conforme Hutchinson, a raça é sexualizada, e a sexualidade, racializada: diferentes caricaturas são imputadas a negr@s, latin@s, asiátic@s etc., e acabam servindo para reforçar a homofobia e a transfobia. Abraçando pautas "burguesas" (o direito de casar, adotar e entrar para o exército...), o movimento LGBTQIA+ se concentraria em demandas do homem branco gay cisgênero - os "novos insiders, na leitura de Hutchinson -, deixando de lado dificuldades mais urgentes vivenciadas por "pessoas de cor". Hutchenson critica a "cilada essencialista" que teria maculado as agendas políticas das organizações de  lésbicas e gays, cegas à multidimensionalidade da opressão sofrida por "categorias bivalentes" (gay + latino; mulher + negra + trans etc. etc.).











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