Material
da disciplina ‘Filosofia do Direito – FND/UFRJ’
Desde
o segundo semestre de 2018, venho ministrando na Faculdade Nacional de Direito
(UFRJ), regularmente, a disciplina de ‘Filosofia do Direito’. Trata-se de
matéria comum a boa parte das faculdades de Direito no Brasil e no mundo. Ainda
se discute, no entanto, que temas e problemas, escolas e autores, deveriam ser
ministrados aos graduandos, em referida disciplina. Em nosso país, são dois os
caminhos usuais:
1º) Muitos professores concentram-se
nos “clássicos” da filosofia ocidental, autores considerados canônicos no âmbito
do pensamento europeu. Seus cursos, geralmente, iniciam-se nos pré-socráticos
(ou em Platão) e encerram-se em Hegel (ou em Marx). Evitam, no entanto, debater
os critérios de inclusão no (e de exclusão do) cânone, e ignoram figuras que,
embora tenham exercido enorme influência sobre as doutrinas filosóficas ocidentais,
derivam de outras civilizações, como o Islã (é o caso de Avicena e Averróis,
que tiveram impacto enorme na Cristandade medieval).
2º) Outros professores focam em
filósofos contemporâneos que ganharam proeminência, na práxis jurisdicional, na
formulação de políticas públicas etc. São, em especial, intelectuais de língua inglesa,
como John Rawls e Robert Nozick (que adquirem cada vez mais visibilidade, em
virtude da pax americana, da
tentativa estadunidense de exercer influência cultural sobre o resto do planeta).
Semelhantes cursos se concentram em problemas correlacionados à Teoria da
Justiça (isto é, os critérios que podem legitimar medidas de justiça
distributiva), tema que se tornou caro a pensadores liberais da Ivy League (ou
seja, das universidades mais prestigiadas dos EUA), notadamente após o desmonte
do Estado de Bem-Estar Social. Perde-se, com semelhantes abordagens, a
consciência da historicidade dos
dilemas filosóficos, e incorre-se no risco de hipostasiar a doutrina de figuras
menores – como Rawls, acima citado – exclusivamente em virtude da visibilidade midiática que receberam.
Ambas as abordagens pecam ao focar exclusivamente em correntes filosóficas produzidas no Norte Global (ignorando a
universalidade do filosofar), e ao desconsiderar a forma como a filosofia se insere na cultura, em permanente
correlação com os campos da política, da economia, da religião, da arte etc.
Compreender a filosofia como um fenômeno cultural pressupõe indagar os
critérios que nos levam a perceber um sistema teórico como relevante (em
detrimento de outros), atentar para as dinâmicas sociopolíticas que levam
determinadas escolas ao estrelato (ou ao ostracismo), discutir como questões de
raça, classe e gênero incidem na maneira como interpretamos certas doutrinas
etc. Não há História da Filosofia que
não envolva cortes, apagamentos, reconstruções; o “resgate” de obras e autores
envolve tentativas de “reinvenção” do passado, tendo em vista correlações de
forças do presente.
Minha principal preocupação, ao
estruturar meu próprio curso de Filosofia do Direito, foi responder a esses
desafios, oferecendo uma disciplina que, por um lado, propõe uma “rememoração”
da atividade (jus)filosófica – da Antiguidade aos nossos dias –, mas, por
outro, destaca como nossas concepções contemporâneas “distorcem” a leitura que
fazemos dos textos do passado. Procuro incorporar pensadores de diversas
regiões do globo, de modo a salientar a diversidade
de estratégias possíveis no campo da especulação filosófica. Ao invés de
concentrar a atenção em dois ou três grandes polos de produção do saber
(Sorbonne, Cambridge, Harvard...), tento construir um panorama “caleidoscópico”
da Filosofia do Direito, recorrendo a autores da América Latina, da África, da
Ásia etc.
A disciplina se organiza do
seguinte modo:
1. Uma aula introdutória, que busca
definir o que é a Filosofia (e, ainda, o que é a Filosofia do Direito),
situando-a face a outros ramos do saber. Aqui, as principais referências serão Gustav
Radbruch e Norberto Bobbio. Ademais, procura delinear a questão
fundamental da reflexão jusfilosófica (“o
que fundamenta as normas jurídicas?”), e toma Platão por base. É a
reflexão sobre as conexões entre (ir)racionalidade e (in)justiça que serve de leitmotiv da nossa disciplina. O
problema da (im)possibilidade de uma concepção objetiva do justo (e dos
valores, de forma geral) é o foco do curso, apresentado sob diferentes pontos
de vista.
As aulas seguintes investigam as três
respostas “clássicas” à questão platônica indicada acima:
2. Na segunda aula, tratamos do Jusnaturalismo
Antigo e Medieval, partindo da obra de Tomás de Aquino.
3. Na terceira aula, abordamos o Jusnaturalismo
Moderno (precursor do Positivismo Jurídico), adotando Thomas
Hobbes como referência.
4. Na quarta aula, discutimos o Culturalismo
Jurídico, tomando Hegel e o Idealismo Alemão como pontos de
partida.
Em seguida, analisamos (também em
três aulas), o processo de erosão das
respostas “clássicas”, associado a uma perda de fé (desencadeada, antes de
mais, pelas Duas Grandes Guerras Mundiais) na “racionalidade ocidental”:
5. Na quinta aula, falamos de Hannah
Arendt, e da associação que referida autora faz entre “racionalismo” e
totalitarismo.
6. Na sexta aula, é a vida e a obra
de Angela Davis que tentamos apresentar, focando na correlação que a
filósofa norte-americana desenvolve entre capitalismo moderno, Iluminismo, ideologia
liberal e racismo.
7. Na sétima aula, debatemos, a
partir do filósofo camaronês Achille Mbembe, a articulação entre Modernidade e
Colonialidade.
Após, tratamos (em três aulas,
igualmente) das tentativas contemporâneas de reconstrução de uma ideia de justiça, capazes de superar as
críticas dos séculos XIX e XXI a um modelo de racionalidade instrumental
centrado na Europa ocidental:
8. Na oitava aula, discutimos, à luz
de Martha Nussbaum (e das teorias neoaristotélicas), os esforços de
reaproximação entre razão e afeto, ciência e vida cotidiana (para além dos
dualismos característicos do pensamento ocidental hegemônico).
9. Na nona aula, baseamo-nos em Nancy
Fraser (e nas teorias neomarxistas) para pôr em questão as mais
tradicionais teorias da justiça (distributiva) debatidas, hoje, nas nações de
língua inglesa – e em especial o liberalismo igualitário igualitário e o
comunitarismo.
10. Na décima aula, falamos de Angela
P. Harris (e da Teoria Racial Crítica), que, assumindo a herança do
pensamento jurídico crítico pós-moderno (que emerge nas décadas de 1960 e
1970), reflete sobre como o Direito formal pode servir como instrumento à
manutenção de relações de opressão interseccionais.
11. Uma aula de conclusão procura
estimular – inspirando-se no trabalho do filósofo brasileiro Roberto
Mangabeira Unger – a “imaginação institucional” e o “experimentalismo
democrático”, a capacidade de escapar do “senso comum teórico dos juristas” (na
conceituação de Warat) e explorar contrapossibilidades utópicas do universo
jurídico.
Abaixo, postamos dois links: o
primeiro traz uma apostila com resumo das aulas ministradas, o cronograma e a
bibliografia do curso, bem como alguns slides utilizados nas aulas ministradas;
o segundo traz os textos de leitura obrigatória de que nos valemos, ao longo da
disciplina.
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