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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO REMOTO NA PANDEMIA









Considerações sobre o ensino remoto na pandemia

O que é ensinar? E o que é aprender? Embora encontrem-se, desde (ao menos) a década de 1950, em crise – analisada, em artigo clássico, pelo glorioso San Tiago Dantas, um dos maiores juristas produzidos pela FND –, as escolas de Direito raramente questionam-se acerca das metodologias de ensino-aprendizagem que esposam. Não são poucos os professores de Direito que consideram a docência uma atividade menor, secundária face ao trabalho que, como advogados, promotores ou juízes, desempenham em fóruns e tribunais. A sala de aula serviria apenas para que transmitissem (termo que, como denuncia Paulo Freire, indica comprometimento com um modelo de “educação bancária”, baseada no depósito e no saque de informações), a uma geração mais jovem, segredos profissionais adquiridos na lida forense. Nessa toada, não causa espécie que, ainda hoje, seja comum a pergunta, feita aos docentes pelas suas classes: “o senhor trabalha ou só dá aula?”. As faculdades de Direito são encaradas como corporações de ofício, destinadas ao treinamento técnico-profissionalizante. Ou pior: como centros preparatórios para o exame da OAB e para concursos públicos. O professor, de seu púlpito, fala ininterruptamente por uma hora e quarenta minutos, adestrando futuros operadores do Direito quanto ao funcionamento do maquinário jurídico-institucional: naturalizamos, assim, um paradigma didático-pedagógico monológico, vertical, acrítico, e que reforça o colonialismo mental. Ora, essas tendências têm se agravado, nos últimos meses, em decorrência da quarentena.

Com a eclosão da pandemia de coronavírus, as instituições federais de ensino superior (ifes) suspenderam as aulas – por um lado, para que discentes, docentes e servidores técnico-administrativos pudessem, em uma conjuntura de crise sanitária, econômica e política, cuidar de si e dos seus; e, por outro, para que os recursos da universidade (laboratórios, hospitais, gabinetes...) pudessem ser redirecionados em estratégias coletivas voltadas ao combate do COVID-19 – e à reflexão sobre as consequências, para o Brasil e para o mundo, desse evento inaudito, sobretudo junto aos grupos mais vulnerabilizados. No entanto, pressionadas pelo Ministério da Educação (que acredita que o mais autêntico papel das universidades é o de produzir diplomas), as ifes viram-se forçadas a retomar o semestre, por via remota. É o que justifica a adoção, por todo o país, do Período Letivo Extraordinário (PLE). Mas o retorno às atividades didáticas de maneira telemática fez com que cursos, de graduação e pós-graduação, das mais diversas áreas do conhecimento rediscutissem, intensamente, suas metodologias de ensino-aprendizagem. Afinal, não trata-se de uma simples transposição, para o meio virtual, do material ministrado, em tempos pré-pandemia, de modo presencial. Qualquer pessoa sensata sabe que, na educação, a forma condiciona o conteúdo, e é por ele condicionada. A adoção de práticas remotas leva a questionamentos urgentes: o que ensinar?; como ensinar?; para quem ensinar?; para quê ensinar? Na maioria dos espaços, entendeu-se que o PLE não poderia ser enxergado como um semestre regular, e que o cenário de excepcionalidade permitia (ou, antes, exigia!) o estabelecimento de estratégias excepcionais.

As faculdades de Direito, aqui, constituem-se em exceções. Tradicionalmente refratárias, como vimos acima, ao debate metodológico, entenderam que bastava replicar, à distância, os conteúdos ministrados em sala. Afinal, para o professor que concebe a aula como um processo, não interativo, mas interpassivo (para valermo-nos da categoria cunhada por Mark Fisher), no qual os alunos figuram apenas como destinatários de um saber pré-consolidado, não há diferença entre lecionar na frente de uma turma ou de uma câmera. Suas aulas já eram, mesmo antes da quarentena, dadas à distância, ainda que presenciais: distância entre “aquele que sabe” e “aquele que não sabe”, aquele que produz informações e aquele que as consome, o mestre e o aprendiz. Dessa forma, o PLE realça as dimensões mais nefastas do ensino jurídico hegemônico. Todo aluno carrega consigo, para a sala de aula, o contexto (familiar, social, cultural) em que vive. A educação, enquanto ato, não industrial, mas artesanal, se amolda a essa diversidade de backgrounds. Mas não o ensino jurídico (mormente o ensino jurídico virtual), que, no mais das vezes, ignora e invisibiliza as diferentes condições materiais, psicossociais e espirituais dos estudantes – em especial dos estudantes mais pobres –, a partir de uma retórica de “formalidade”, “impessoalidade” e “meritocracia”.

Não podemos menosprezar o impacto que a substituição de aulas presenciais por atividades didáticas remotas terá sobre o processo de ensino-aprendizagem – e sobre a rotina de professores e alunos, de maneira geral. Para além da discussão sobre (a falta de) acesso a computadores pessoais e internet, é necessário que nos perguntemos: quantos de nós, alunos e professores, precisam cuidar de pessoas que encontram-se no grupo de risco, em casa?; quantos de nós tem enfrentado transtornos de ordem psicossocial, em decorrência de uma era de incertezas?; quantos de nós, em meio a situações domésticas fragilizadas (e cujos problemas são catalizados pela crise), tem tempo e espaço para acompanhar disciplinas?; quantos de nós perderam empregos e estágios, devido à pandemia?; quantos de nós estão sendo forçados a trabalhar muito além do expediente normal, para que possam se conservar nos empregos ou nos estágios?; quantos de nós convivem com pessoas que, atuando em setores considerados essenciais, não podem resguardar-se, durante a pandemia?... Ao invés de considerar um plano de retomada, pós-pandemia, que reformasse o ano letivo (redesenhando a grade curricular, de sorte, inclusive, a reduzir conteúdo) e, no correr de alguns semestres, “recuperasse o tempo perdido”, as ifes optaram por, em meio à quarentena, voltar às aulas. O ônus dessa ausência de iniciativas mais ousadas recairá sobre professores e alunos (notadamente sobre alunos periféricos). Em última instância, a energia gasta para, diante de um momento anormal, conservar a sensação de normalidade, é muito maior do que aquela que seria despendida, se aceitássemos que nos encontramos em um quadro atípico, e meditássemos, coletivamente, sobre estratégias novas para responder a ele. O “pensamento único” e a “ditadura da não-alternativa” (característicos de nossa sociedade neoliberal), impedem que pensemos a não ser no seio de faltas dicotomias, como retomar o semestre ou interromper o semestre.

Subjacente a essas indagações, paira outra, mais radical, e que vem sendo evitada pelas escolas de Direito (pois enfrentá-la implicaria em politizar a análise, coisa que muitos juristas rejeitam a qualquer custo): faz sentido ministrar, agora, o mesmo conteúdo que lecionaríamos antes do COVID-19 – partindo da pressuposição, bastante improvável, de que, ao final da quarentena, o mundo voltará a ser tal e qual era antes? Faz sentido seguir discutindo, nas searas do Direito Constitucional, do Direito Civil ou do Direito Penal, os mesmos tópicos que discutíamos antes da pandemia, ignorando a maneira como a atual crise incide (e incidirá) sobre nossas estruturas jurídicas e políticas? O coronavírus não impõe uma nova lógica no modo como o indivíduo relaciona-se consigo e com os demais – lógica que demandará, das faculdades de Direito, uma reforma substancial nas grades curriculares? Ao invés de, aos trancos e barrancos, tentarmos reproduzir, por via remota, as mesmas dinâmicas adotadas antes da pandemia, deveríamos estar canalizando nossos esforços para construir uma universidade apta a responder aos desafios do mundo que se sucederá à pandemia. Se os cursos jurídicos não forem capazes de se reinventar e se oxigenar (em um tempo no qual o próprio direito à respiração se mostra ameaçado), serão, fatalmente, suplantados (ou melhor: sufocados) por canais no youtube e páginas no instagram, por uma lógica, não de construção de saberes, mas de criação de “conteúdo” – e sob aplausos de alunos e professores.



Textos para subsidiar a discussão:





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