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PROJETO DO GRUPO



CERCO - CONTROLE ESTATAL, RACISMO E COLONIALIDADE



(...) Minha Negritude não é uma pedra,
E sua surdez lançada contra o clamor do dia
Minha Negritude não é uma catarata de
água morta
sobre o olho morto da terra
Minha Negritude também não é uma torre
ou uma catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Minha negritude perfura a aflição de seu
sossego correto.(...)
Diário de um retorno ao país natal,
Aimé Césaire


Apresentação


“Como pôde a Europa moderna, que promovia ideais como a ‘dignidade humana’ e a ‘democracia’, estar tão íntima e inextrincavelmente implicada na escravidão e nos projetos coloniais?” É essa a indagação que norteará as atividades do grupo ora proposto. O projeto dá continuidade às pesquisas que desenvolvemos em sede de mestrado (Raízes medievais do Estado moderno: a contribuição da Reforma Gregoriana, defendido na UFMG em 2013), de doutorado (Crítica da razão antiutópica: inovação institucional na aurora do Estado moderno, defendido, também na UFMG, em 2016) e de pós-doutorado (Diplomacia e guerra nas utopias do Antigo Regime: humanismo, Direito das Gentes e inovação institucional, desenvolvido na UFSC ao longo do ano de 2017, e Filosofia do Estado e utopias históricas: comunidades alternativas como laboratórios de experimentalismo institucional, ainda em desenvolvimento na UFMG).[1] Não é possível compreender a formação e o desenvolvimento do Estado moderno – caracterizado, como salientou Weber, pela “apropriação dos meios de gestão” e pelo “monopólio do exercício legítimo da violência” –[2] sem analisar as Grandes Navegações (isto é, a conquista da América, da África, da Ásia e da Oceania pela Europa). Os conceitos de ‘Modernidade’ e ‘Colonialidade’ são interdependentes: a construção da identidade do Ocidente pós-renascentista pressupõe o (para falarmos como Enrique Dussel) “encobrimento do Outro” promovido pelo imperialismo – e vice-versa.[3] O despontar de uma Modernidade Central, ilustrada, caminha pari passu com a eclosão de uma Modernidade Periférica, subalterna: na fase de acumulação primitiva de capital, índios e negros serão convertidos em “proletariado externo” da economia europeia, e seu sangue lubrificará as engrenagens da máquina político-social metropolitana.[4] Nesse sentido, a discriminação baseada na categoria de ‘raça’ terá papel imprescindível como estratégia legitimadora da dominação colonial.[5] Como Franz Fanon observa: “a Europa [moderna] tem uma estrutura racista”.[6] Se o tráfico negreiro é a face noturna do capitalismo, as teorias racialistas são o anverso do pensamento jusfilosófico moderno (que, da doutrina do direito divino dos reis às teses contratualistas, procuram justificar o poder burocrático-administrativo do Estado soberano). É essa articulação que o grupo de pesquisa buscará debater, dando especial ênfase ao tema do “racismo de Estado” (a biopolítica e a necropolítica, para valermo-nos dos conceitos elaborados, respectivamente, por Michel Foucault e Achille Mbembe).[7]


Resumo


Problemas candentes do debate público contemporâneo – como a questão dos refugiados – encontram-se diretamente conectados à progressiva pauperização das condições de vida dos povos não-ocidentais, em virtude de práticas colonialistas e neocolonistas implementadas desde o século XVI. Assistimos hoje, como Mbembe argumenta, a uma verdadeira “africanização do mundo”, à medida que o capitalismo financeiro exporta, para as mais variadas regiões do planeta, os mesmos mecanismos de “militarização do cotidiano” e de “suspensão da ordem judicial” que vitimaram a África ao longo dos séculos.[8] A clássica distinção entre o “campo do direito” (países “civilizados”, cujos cidadãos, livres e iguais, são tutelados por direitos e garantias fundamentais) e o “campo do não-direito” (colônias, marcadas pela “instrumentalização generalizada da existência humana”) começa a ser dissolvida, com o surgimento, no hemisfério norte, de bolsões de “opressão sistematizada” (guetos nos quais negros, índios, latinos e árabes são lançados à própria sorte).[9] No período de sedimentação dos direitos de fraternidade – no qual, dos escombros do pós-II Guerra, uma nova ordem mundial deveria florescer, calcada na afirmação da dignidade da pessoa humana –, o Estado continua operando uma “cesura biológica” entre diferentes grupos populacionais, a partir de formas insidiosas de controle. Ignorando o peso do racismo e do colonialismo no delineamento do pensamento jurídico moderno, a Filosofia do Direito hegemônica – herdeira de Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel – revela-se incapaz de apreender, integralmente, o significado do “poder soberano”. Ora, é a partir de um horizonte subalterno – o resgate dos contra-saberes dos escravizados e dos explorados pelo projeto de modernização ocidental – que nosso grupo de pesquisa pretende estabelecer um espaço de reflexão sobre as concepções jusfilosóficas do presente e do passado.[10]
Os trabalhos do grupo se ancorarão em uma leitura decolonial da tradição jusfilosófica do Ocidente, o que implica a investigação de duas fontes básicas: a sempre crescente literatura decolonial e pós-colonial, com obras nacionais e internacionais; e o cânone da Filosofia do Direito ocidental (com foco em escritos produzidos a partir da Primeira Modernidade). O eixo de nossas pesquisas será o “racismo de Estado” (quer dizer, a forma como o Estado moderno, racionalizado e centralizado, serviu e serve a políticas de segregação racial, direcionadas, antes de mais, aos negros). Por essa razão, as chamadas “teorias raciais críticas” (como as que despontaram nos Estados Unidos a partir do magistério de Derrick Bell) também ganharão destaque.[11] Discutiremos a maneira como os “clássicos” do pensamento jurídico moderno deliberadamente ignoraram (ou, por vezes, defenderam) a situação colonial e escravista:[12] a invisibilização do negro na Filosofia do Direito reverbera, mesmo agora, na forma como o ensino jurídico se realiza (inclusive na América Latina). Se desejamos construir uma grelha analítica genuinamente crítica e emancipatória, precisamos implodir os marcos do humanismo pós-renascentista (eurocêntrico), através de abordagens que celebrem a diferença – acolhendo, antes de mais, as afroperspectividades (na esteira do que o filósofo Renato Nogueira vem propondo nos últimos anos).[13] Uma “crítica da razão negra” (ou seja, da invenção do negro como o Totalmente Outro da Europa) é condição de possibilidade para uma crítica da “racionalidade jurídica”, uma (para valermo-nos da terminologia de Antônio Carlos Wolkmer) “dessacralização dos mitos normativos” em que o Direito moderno, formalista e massificador, se apoia. Assim, a pesquisa sobre o “racismo de Estado” funciona como ponto de partida para um esforço mais amplo, qual seja, a pavimentação de uma Filosofia do Direito desde o Brasil (não apenas feita no Brasil, mas efetivamente brasileira, não eurocentrada/kemalista, mas comprometida com um humanismo transmoderno).[14] Como Aimé Césaire ensina, o “reducionismo europeu” diminuiu a noção de universal “às suas próprias dimensões”; é necessário que as comunidades não-europeias, então, militem por um humanismo “à medida do mundo”, apto a desconstruir as generalizações do discurso moderno.[15]


Linhas e projetos de pesquisa


O grupo irá se organizar em duas linhas distintas de pesquisa, que orbitarão em torno do tema do “racismo de Estado” (e, por conseguinte, do “biopoder”):


O centro visto pela periferia: o Estado moderno no pensamento decolonial e nas teorias raciais críticas


Através de uma revisão da vasta bibliografia concernente às teorias pós-coloniais, decoloniais e raciais críticas, a linha de pesquisa promoverá uma reflexão sobre a função do controle estatal nos territórios do globo caracterizados pela modernização periférica. Eurocentrado, o estudo de Filosofia do Direito, no Brasil, desconsidera as especificidades de nossa experiência histórica – impactada pela dominação estrangeira – no desenho do ordenamento jurídico pátrio. O resgate de interpretações subalternas advindas do hemisfério sul (isto é, de jusfilósofos não-europeus que se bateram contra as tentativas de “ocidentalização a fórceps”), bem como de teorias afroperspectivistas, servirá de plataforma para que possamos refletir acerca da necessidade de construção de um pensamento jurídico-político que escape às categorizações tradicionais e traduza o imaginário dos trópicos. A legislação estatal, geral e abstrata, oferece um verniz de homogeneidade e de objetividade a práticas excludentes de segregação e criminalização de negros e índios. Dedicadas à denúncia da “racionalidade instrumental” que sustenta o Direito moderno, as chamadas “teorias críticas” (inspiradas em correntes tão diversas quanto a Escola de Frankfurt e o pós-estruturalismo francês) frequentemente ignoram as dimensões da escravidão e da colonialidade – adstringindo-se, desse modo, a uma “briga de comadres”, na qual o arsenal teórico elaborado pelo Ocidente moderno volta-se contra si mesmo.[16] Uma releitura abrangente dos limites da “racionalidade instrumental” no Direito – cuja mais cabal expressão se encontra nos positivismos jurídicos do século XX – depende de uma recuperação da memória dos contra-saberes que – na África, na Diáspora Negra e na América Latina, antes de mais – explicitaram a natureza racista do Estado soberano. A partir dessa estrutura, poderão ser desenvolvidos projetos de pesquisa que visem questões como: (i) a tensão entre antimodernos, ultramodernos, pós-modernos e transmodernos, no debate jusfilosófico contemporâno; (ii) as potencialidades e as limitações do universalismo e do multiculturalismo; (iii) a contribuição de jusfilósofos afrodescendentes e latino-americanos; (iv) a correlação entre “racionalidade jurídica” – formalista – e racismo.


A periferia vista pelo centro: racismo e colonialismo na tradição jusfilosófica ocidental


A expansão dos impérios europeus está na gênese do Estado moderno. Natural, pois, que a sombra da colonização paire sobre os principais sistemas jusfilosóficos contemporâneos. Como Susan Buck-Morss anteviu,[17] a ‘escravidão’ foi fartamente utilizada, por autores da Modernidade Clássica (Bossuet, Locke, Hegel etc.), enquanto metáfora para descrever a condição humana na sociedade europeia – geralmente, em projetos que advogavam pelo fim do Ancien Régime e pela instauração de uma sociedade de livre mercado. Ironicamente, foram poucos os pensadores que, como Condorcet,[18] se aventuraram a questionar os procedimentos factuais de escravismo que, nas colônias, eram patrocinados pelos liberais ilustrados. É esse hiato – entre a escravidão metafórica, combatida pelas teorias modernas, e a escravidão factual, de que a Modernidade se alimenta – que deve ser explicado. Por meio de uma releitura desencantada de obras célebres produzidas pela Filosofia do Direito europeia a partir da Renascença, investigaremos como a intelligentsia ocidental contribuiu para a fixação, no imaginário coletivo, de uma imagem caricatural do Outro – o índio “canibal”, o negro “idólatra” e “primitivo” –, imprescindível à legitimação do controle estatal.[19] Já existe, no âmbito dos estudos decoloniais, incontáveis pesquisas que se ocupam da representação de africanos e ameríndios nas artes, na literatura e na filosofia da Europa moderna – discutindo, por exemplo, a figura de Caliban em A tempestade, conhecida peça de Shakespeare. Nosso escopo será mais restrito: de que modo os jusfilósofos, em específico, retrataram grupos étnico-culturais diferentes? A partir dessa estrutura, poderão ser desenvolvidos projetos de pesquisa que visem questões como: (i) eugenismo e Direito na contemporaneidade – Gobineau, Chamberlain, Rosenberg etc.; (ii) a América e a África no imaginário jurídico-político ocidental; (iii) fundamentações filosóficas do colonialismo e do neocolonialismo – as teses da guerra justa, da missão civilizatória, da intervenção humanitária etc.; (iv) as potencialidades e os limites dos movimentos antirracistas do hemisfério norte.


Cronograma de atividades


Inicialmente, os encontros do grupo serão quinzenais, dentro da Faculdade de Direito. O cronograma, as leituras e a metodologia serão definidas com o início das atividades.


Público


Serão aceitos alunos de graduação e de pós-graduação da Faculdade Nacional de Direito e de outras unidades da UFRJ. Em um primeiro momento, não estabeleceremos limite de vagas, e o ingresso no CERCO será condicionado apenas à participação do discente nas atividades desenvolvidas pelo grupo.


[1] O principal trabalho resultante desse ciclo de pesquisas é ALMEIDA, Philippe Oliveira de. Crítica da razão antiutópica. São Paulo: Loyola, 2018. Pela Alameda Editoral, está previsto para a publicação, em dezembro próximo, de Raízes medievais do Estado moderno. Ademais, diversos artigos foram publicados, no âmbito dessas investigações; por todos, v. ALMEIDA, Philippe Oliveira de. Da insularidade da utopia à insularidade do Estado: o monopólio da violência no Antigo Regime e na Revolução Francesa. Morus – Utopia e Renascimento, Campinas, v. 12, p. 57 a 80, 2017.
[2] Cf. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2004.
[3] Sobre o tema, recomendamos o já clássico DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. V., ainda, DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 1997.
[4] A propósito, v. GALEANO, Eduardo. Veias abertas da América Latina. Tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2011. Cf., também, DINIZ, Artur José Almeida. A política e o terceiro mundo: contradições econômicas contemporâneas. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1983.
[5] Uma introdução ao Direito Colonial pode ser encontrada em DUVE, Thomas; PIHLAJAMÄKI, Heikki (Eds.). New Horizons in Spanish Colonial Law: Contributions to Transnational Early Modern Legal History. Berlin: Max Plank Institute for European Legal History, 2015.
[6] FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008, p. 89.
[7] V. BERNARDES, Célia Regina Ody. Racismo de Estado: uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault. Curitiba: Editora Juruá, 2013.
[8] V. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2018.
[9] V. MBEMBE, Achille. Necropolítica: bipoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.
[10] Sobre a necessidade de se resgatar “horizontes subalternos” na compreensão do fenômeno jurídico, v. SANTOS, Boaventura de Souza. Poderá o Direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 3 a 76, maio de 2003.
[11] Cf. BELL, Derrick. Race, Racism, and American Law. New York: Aspen Publishers, 2008.
[12] Cf. LEVINE, Peter. The lack of diversity in philosophy is blocking its progress. Aeon, London, 28 de junho de 2016. Disponível em <https://aeon.co/ideas/the-lack-of-diversity-in-philosophy-is-blocking-its-progress>, acessado em 16 de novembro de 2017. V., também, GARFIELD, Jay L; NORDEN, W. Van. If Phylosophy won’t diversify, let’s call it what it really is. The New York Times, New York, 11 de maio de 2016. Disponível em <https://www.nytimes.com/2016/05/11/opinion/if-philosophy-wont-diversify-lets-call-it-what-it-really-is.html>, acessado em 16 de novembro de 2017.
[13] V. NOGUEIRA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 20.639. Rio de Janeiro: Pallas, Biblioteca Nacional, 2014.
[14] Há uma extensa literatura que se propõe a discutir a (in)existência de um pensamento filosófico brasileiro. Recomendamos, à guisa de introdução, a leitura das obras: DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas: ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2017; PINTO, Paulo Roberto Margutti. História da Filosofia do Brasil (1500 – hoje). São Paulo: Loyola, 2013; CABRERA, Julio. Diário de um filósofo no Brasil. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2010.
[15] Cf. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.
[16] Como Mbembe leciona: “Permanecerá inacabada a crítica da modernidade, enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o surgir do princípio da raça e com a lenta transformação deste princípio em paradigma principal, ontem como hoje, para as técnicas de dominação”. MBEMBE. Crítica da razão negra..., cit., p. 101 e 102.
[17] BUCK-MORSS, Susan. Hegel e o Haiti. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo, n-1 edições, 2017.
[18] Cf. CONDORCET. A escravidão dos negros. Tradução de Aarão Reis. Rio de Janeiro: Serafim José Alves Editor, 1881.
[19] Sobre o tema, v. HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. Recomendamos, ainda, a leitura de TROUSSON, Raymond. O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a Renascença. Tradução de Emerson Tin. Morus – Utopia e Renascimento, Campinas, nº. 3, p. 319 a 339, 2006.


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